Todos um dia precisam de explodir

A Patrícia adolescente foi sempre assim, ingénua, vê o bem de toda a gente e é sempre cada facada que dão mal tenham oportunidade. Ouvir e calar, ouvir e calar. Rotina que na escola optei, por me proteger, por me proteger dos outros! Esta estratégia ia comendo cada dia mais um pedaço de mim, a Patrícia que viam com óculos, vestida a seu gosto e não andava na moda dos outros, que não usava a linguagem corrente dos adolescentes para entrarem nos grupos dos "populares" porque mesmo que a adaptasse a minha imagem não era aceite no grupo. 
A rejeição.
Foi sempre uma palavra que me acompanhou durante anos. Não, graças a Deus sempre tive amigos, sim amigos! Tive poucos, mas tive! Família? Foi sempre a primeira a dar a mão, sempre tive amor e apoio. Mas aquele apoio de conforto e de força mal saía porta fora de casa a realidade era sempre diferente da força que tinha dentro de casa. Pensava cá para mim: não! é hoje que digo basta, é hoje que todos vão ver que a caixa de óculos não é a pessoa que eles pensam que é.

Passou-se anos... Esta ideia vinha sempre todos os dias mal saía de casa. A realidade e monstruosidade que era o mundo lá fora. Desistia, perdia as forças!
A Patrícia sorria sempre quando imaginava a caras deles quando as minhas garras e dentes eram vistas e eles sentirem-se como presas inúteis sem coragem de enfrentar a fera. Esse sorriso desaparecia em instantes... A realidade era outra.

Fui pontapeada, chicoteada, bofeteada, enchuvalhada cada vez que os monstros me olhavam. Estava condenada. Um simples olhar já era motivo de recear que a próxima vitima era eu. Que raio de pensamento tão certo que era. Era a vitima, um brinquedo que era insaciado nas mãos deles. Aquilo não acabava, era sempre mais e mais. Um beliscão ali, um arranhão aculá, um chuto mais abaixo e repetia-se. Todos os dias.
Esta era o que meu corpo sentia em cada palavra, em cada olhar, em cada gesto que faziam na minha direcção. Uma palavra doía mais do que uma valente porrada que nunca tive. Porrada de tal modo bem dada, que sentia meu corpo a escorrer sangue, um olho pisado, um arranhão no braço...nãoo...nada disso! A única coisa que escorria sangue, que estava pisado e arranhado era meu coração. 

Repetia-se. Todos os dias.

Cada pedaço de mim desaparecia. Eram substituídos por características deles, raiva, magoa, prazer, satisfação, tudo o que neles continham era transmissível para mim.

Repetia-se. Todos os dias.

BASTA! 
BASTA!
Chega de ser um boneco maleável, um boneco de entretimento a quem não sabe a existência do sentimento amor quanto mais a palavra em si. Chega de ser comida viva sem compaixão pelo outro. Já fui comida toda. Não restava nada de mim. Acabou-se.

Esperem! Tenho voz! Não tenho coração nem corpo mas tenho voz! Tenho que usar o que me resta e gritar basta!

Chegou o dia, chegou o dia tão aguardado e idealizado durante anos, que belo dia. Saiu-me a melhor lotaria de sempre.  A LIBERDADE!
Não irei referir como aconteceu ao pormenor, talvez um dia.

Falei, gritei. Disse BASTA! Mostrei os dentes, as garras, o coração desfeito e as feridas que fizeram.

Hoje, a Patrícia de vinte e tal anos tem marcas, tem medos, tem feridas saradas. Mas estão lá, cada cicatriz é uma marca de guerra conquistada. Conquistei cada pedaço de mim roubado e mudado, hoje estão todos juntos com retalhos mas estão lá. Estão lá de forma de orgulho e felicidade, entristece-me que isto me tenha acontecido a mim e a muitas mais pessoas, a mais crianças e adolescentes que ainda hoje pensam que já não têm voz! Tirem-lhe tudo mas a voz  será a última coisa que irão perder!

Eu não perdi a esperança. Todos os dias repete-se o sorriso.

Eles? Estão perdidos neste mundo, não! Mundo não, eles não o conhecem. Estão enjaulados numa aldeia. Não sabem o que é a vida, o que é amor. Hoje eles são pais, estão presos, alguns presos na fase de adolescentes, são zé-ninguéns.

Passam mim... aquele medo que percorria meu corpo já não acontece.
Rebaixam a cabeça, escondem-se num buraco imaginário, mudam de passeio, sentem-se incomodados com a minha presença.

Não lhes fiz mal nenhum, não lhes bati ou prejudiquei a vida. Dei voz!

Patrícia de hoje é assim ainda ingénua, tímida e tudo mais como dantes, mas com uma diferença: não admite ouvir e calar como rotina dela.  




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